terça-feira, 24 de novembro de 2009

O espectro de Lamarck


Como o tema da próxima VC é Evolução, o prof. Paulo Cunha selecionou o seguinte texto para nossa reflexão:

No íntimo, somos todos lamarckistas, por Franklin Rumjanek



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Quem tiver dificuldades em fazer o download do arquivo acima, pode ler o texto na íntegra abaixo. Ele foi publicado na edição de janeiro/fevereiro de 2004 na Ciência Hoje.


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No íntimo, somos todos lamarckistas, por Franklin Rumjanek

Depois da forte reação inicial à proposta da seleção natural, lançada em meados do século 19 por Charles Darwin (1809-1882), os biólogos e filósofos em geral gradualmente acalmaram-se. Hoje em dia, com a exceção de uma minoria criacionista, o modelo de Darwin soma um grande número de adeptos nos meios científicos e a maior polêmica no momento parece restringir-se à interpretação dessa hipótese. No entanto, apesar de intelectualmente aceitarmos o evolucionismo darwiniano, no nosso âmago, quando baixamos a guarda, somos aparentemente lamarckistas.


Isso pode ser constatado em conferências e aulas, ou através da leitura de livros didáticos dirigidos a todas as áreas das ciências biológicas, incluindo mesmo os mais atualizados livros de biologia. Como exemplo típico destaco um trecho, de um conceituado livro de bioquímica, a respeito da ocorrência de hemoglobina em organismos mais complexos. Os autores comentam que a simples difusão passiva de O2 é suficiente para oxigenar organismos muito pequenos, e argumentam: “Já que a velocidade de transporte de uma substância difusora varia inversamente com o quadrado da distância a ser percorrida, a velocidade de difusão através de tecidos que têm uma espessura maior que 1 mm é lenta demais para sustentar a vida.” Em seguida, concluem: “Portanto, a evolução de organismos maiores e mais complexos como os anelídeos (por exemplo, minhocas) requereu o desenvolvimento de sistemas de transporte que transportam o O2 ativamente.”


Ora, a tradução dessa necessidade de desenvolver um sistema de transporte não difere em nada dos sentiments interieurs que, segundo Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet Lamarck (1744-1829), promoviam e direcionavam a evolução (ver ‘Girafas, mariposas e anacronismos didáticos’ em CH nº 200). Essa tendência finalista não é rara e reflete eloqüentemente um lapsus linguae que todos cometemos periodicamente. Outra versão da mesma situação é a afirmação de que tal reação, tal sistema, ou tal organela ‘serve’ para isso, ou para aquilo. Se aceitarmos o argumento de que na natureza algo serve para alguma coisa, estaremos concordando implicitamente com uma função. Conseqüentemente, estaremos advogando a causa de William Paley (1743-1805), que em 1802 escreveu sua influente obra Teologia natural ou evidências da existência e atributos da divindade compilados da natureza. A analogia mais famosa de Paley é aquela que descreve seu en contro casual com um relógio. Ele raciocina que aquele intrincado mecanismo servia a uma função específica e vai além, afirmando que se existe um relógio, existe também um relojoeiro. O ser vivo estaria sujeito ao mesmo tipo de analogia envolvendo criatura e criador. Mais tarde Darwin, que havia lido a obra de Paley quando ainda jovem, reverteria tais argumentos e os usaria como munição para sua própria teoria.


Não surpreende, portanto, que Lamarck tenha deixado uma profunda marca em nossa percepção da natureza. O culto teleológico contido na sua visão é mais intuitivo dentro de nossa lógica formal, mecanicista. Além disso, o lamarckismo inconsciente também é martelado em nossas cabeças desde o ensino fundamental. Praticamente todos os livros de ciências, quando tratam dos seres vivos, adotam como dispositivo didático o “existir para servir a alguma função”. Ou ainda que “a natureza é sábia”.


A alternativa não é tão atraente e por isso mesmo mais difícil. Como darwinistas estritos, não poderíamos jamais pensar em termos de função e de finalismo. Teríamos que supor que as coisas e os organismos existentes – ou que já existiram – são apenas o fruto da evolução de ciclos de reações, cujos reagentes encontravam-se presentes na Terra desde os seus primórdios. Tampouco há direção ou mesmo perfeição nessa evolução. Os eventos que produziram a natureza, tal e qual a conhecemos hoje, são essencialmente aleatórios e, é claro, subjugados ao ambiente. Em outras palavras, tudo o que acontece é somente o que é permitido pelas leis da física.


Talvez, assim como no filme Matrix, onde toda a realidade humana é apenas uma construção intelectual, o nosso lamarckismo subjacente seja só uma tentativa de dar coerência a nossos sentidos.

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